Os últimos dez anos de crises políticas na União Europeia assumem a forma de peça de teatro na obra De nieuwe politiek van Europa[1], de Luuk van Middelaar. Através dos dramas dos últimos anos, esta entrevista com o historiador holandês leva-nos da fundação da UE no pós-guerra até ao ano de 2049, delineando aquilo que o regresso da política europeia poderia significar para as próximas décadas.

Laurent Standaert: Em oposição às visões dominantes da Europa como projeto federalista ou intergovernamental, distingue três abordagens à construção da UE. Que abordagens são estas e como é que se articulam com as atuais instituições da UE?

Luuk van Middelaar: Desde 1945 que circulam três abordagens em relação à forma como a futura Europa deveria ser construída e cada uma se reflete nas suas instituições preferidas. Uma delas poderia ser descrita como uma abordagem funcionalista e tecnocrata, que de certa forma compõe o ADN da Comissão Europeia, Tribunal de Justiça e até mesmo do Conselho de Ministros. Este era o método de Jean Monnet e lançou as bases do que viria a ser a Comunidade Económica Europeia. De acordo com esta abordagem, precisamos de retirar o caráter político da política e transformar conflitos em problemas técnicos a resolver. A segunda, a abordagem federalista, tem-se centrado no Parlamento Europeu. Apostou num Parlamento Europeu para criar uma esfera pública europeia, que era vista como um passo no sentido de mais competências supranacionais. A terceira, a abordagem mais confederal, encarnada pelo Conselho Europeu – que eu distingo claramente do Conselho de Ministros –, envolve governos e líderes nacionais. Esta abordagem europeíza as esferas nacionais e confere uma autoridade diferente aos assuntos europeus. O Conselho Europeu assumiu um papel diferente nos últimos dez anos, não por causa de determinadas personalidades ou por qualquer tipo de conspiração mas sim porque a Europa teve de lidar com choques existenciais e momentos de crise. Estes momentos exigiram outro tipo de ação política.

No seu livro designa o período de 1945-1989 como uma espécie de marasmo, senão mesmo coma, do qual a política europeia só volta a acordar em 2008-2018. Porque demorou tanto tempo?            

Considero realmente que 1989, ou o período desde a queda do muro de Berlim em 1989 até à entrada em vigor do Tratado de Maastricht em 1993, constitui um ponto de viragem ou até mesmo uma segunda construção do projeto europeu. Muitas das metamorfoses a que assistimos nos últimos dez anos estavam a “ser preparadas” na altura. Foi a primeira vez que os Estados-Membros se aperceberam de que também teriam de, talvez não imediatamente mas a determinada altura, lidar com questões de segurança e de soberania e que o chapéu da Guerra Fria americana não duraria para sempre. Na altura, alguns, e não apenas os franceses, chegaram a apelar a uma defesa europeia. Hoje assistimos a uma mudança com Trump e o governo americano a já não darem garantias de segurança à Europa. E claro, foi também a altura em que se decidiu criar o euro.

Nada disto foi realmente passado à prática em 1989 porque o fim da Guerra Fria constituiu para o continente europeu um momento de politização imediatamente captado pela ideia de Francis Fukuyama do “fim da história”, que predominou no ocidente e que, de certa forma, paralisou Bruxelas durante anos. Esta ideia de que o mundo iria seguir a via das democracias liberais capitalistas até à fase final da história mundial, com transições na Europa de Leste, a adesão da China à Organização Mundial do Comércio e os Estados Unidos a lutarem pela democracia no resto do mundo, constituiu um sonífero político e um delírio.

Os últimos dez anos de crises trouxeram de volta ao panorama europeu aquilo que designa de “política de acontecimentos“. Porque é que o Conselho Europeu esteve no centro desses acontecimentos e que momentos se destacam?

Aquilo com que a UE se tem deparado exigiu uma política de acontecimentos, a arte política da improvisação enquanto forma de tomar decisões rápidas e controversas. Por este motivo, o Conselho Europeu é o centro do poder e da autoridade. Os seus membros não se fazem passar por peritos em tudo mas são eleitos e tem uma ligação relativamente próxima dos seus eleitores e da comunicação social e, por conseguinte, da opinião pública nacional.

Um desses momentos aconteceu em maio de 2010, com o famoso “Quando o Euro falha, a Europa falha” de Angela Merkel. Nesta altura, a pressão dos mercados era grande e o presidente norte-americano Barack Obama fazia telefonemas a pedir “Por amor de Deus, salvem o Euro”. Outro momento seria no final de 2015, início de 2016, durante a crise dos refugiados, com imagens dramáticas e a sensação de que os Estados-Membros estavam a perder o controlo, com centenas de milhares de pessoas a entrarem na UE pela rota dos Balcãs. Outro projeto europeu central – Schengen e a livre circulação na UE – estava em causa. O terceiro momento que eu escolheria seria o dia depois do referendo do Brexit, 24 de Junho de 2016. Houve um momento de pânico em relação à possibilidade de outros Estados-Membros seguirem o mesmo exemplo e que a saída do Reino Unido significasse o princípio do fim.

Na sua opinião, onde estará a União Europeia em 2049?

Eu sou historiador e 30 anos é muito tempo. Olhar para 2049 implica olhar para o mundo no qual a Europa se poderia encontrar. Celebrar-se-á o centenário da China comunista e o atual presidente, Xi Jinping, definiu como objectivo que a China seja o país líder a nível mundial precisamente em 2049. Para a Europa enquanto continente, uma questão importante é a de saber onde se posicionar entre a China e a América. Esta é uma questão central que deveria estar na base das nossas políticas e decisões políticas. Muita coisa está em jogo: trata-se de saber se a Europa pode tornar-se um dos polos num mundo multipolar ou se se tornará um campo de batalha para a América e China, pelo menos do ponto de vista económico, já para não falar – nem quero pensar – do ponto de vista militar. Quando a chanceler Merkel diz: “Nós, europeus, temos de assumir as rédeas do nosso destino” e o presidente Emmanuel Macron fala da “soberania europeia”, aquilo a que se referem é precisamente isso: como é que a Europa poderá defender os seus próprios interesses daqui a trinta anos? Seja no que diz respeito à economia digital, alterações climáticas, defesa ou o euro enquanto moeda global de reserva, o que está em questão é a capacidade da Europa de atuar e definir o seu próprio futuro.

O que significaria isso para a estrutura e instituições da UE?

O poder executivo da UE deveria evoluir no sentido de um entendimento melhor e mais claro entre a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. O Conselho Europeu é o organismo necessário para algumas destas decisões de longo prazo controversas e de grande alcance e a Comissão Europeia traz consigo o poder de reflexão e o acompanhamento executivo, juntamente com a sua capacidade de pensar pela Europa como um todo.

Do ponto de vista legislativo, o Parlamento Europeu é, obviamente, um ator importante. Tem mais poder do que muitos parlamentos nacionais, no sentido em que tem uma voz forte enquanto colegislador. Mas a sua fragilidade reside na sua ligação com os eleitores e a opinião pública, que se esperava que melhorasse com o passar do tempo. O problema do Parlamento é que não permitiu verdadeiramente que surgisse oposição. Há muito tempo que está dividido entre, por um lado, uma grande aliança que expressa o consenso de Bruxelas em relação àquilo que deveria ser a Europa e uma abordagem mais federal e supranacional e, por outro, alguns deputados europeus anti-Europa, como Marine Le Pen ou Nigel Farage. Mas essa situação não é saudável do ponto de vista democrático, uma vez que não reflete a variedade de posições defendidas na Europa.

Podem as eleições europeias de 2019 ser um ponto de viragem, com aqueles que se opõem à forma como as coisas são geridas, mas que não querem destruir a Europa, finalmente a fazerem-se ouvir no Parlamento?

Talvez. Penso que aquilo que querem líderes políticos como Matteo Salvini da Liga Norte de Itália ou Jarosław Kaczyński do partido Lei e Justiça da Polónia não é matar ou abandonar a Europa, mas sim mudá-la. Enquanto analista, só posso dizer que em relação a Schengen ou à migração é positivo que esses partidos ofereçam uma perspetiva diferente e (também) representativa, que alimente os debates e a esfera pública, tanto a nível europeu como nacional. Durante a crise dos refugiados, ficou claro que o primeiro ministro húngaro Viktor Orbán desempenhou um papel importante, opondo-se à abordagem da UE, liderada por Bruxelas e Berlim. Sem querer desculpar a forma como mina a democracia a nível nacional, propor políticas alternativas em matéria de migração e identidade era importante, quer eu goste quer não. Uma verdadeira oposição no teatro da política europeia nunca tinha existido no passado.

Valores como a democracia, os direitos humanos e o Estado de direito estão nas bases da construção da UE. Poderia a UE desintegrar-se ou dividir-se em relação a esses valores nos próximos 30 anos?

Sim, penso que sim. Aquilo que descreve como valores são parte integrante da identidade da Europa e da imagem que esta tem de si própria. Um clube de democracias. Nessa altura é possível ver uma potencial divisão entre a União enquanto, por um lado, espaço de valores como a democracia, o Estado de direito e a liberdade e, por outro, enquanto expressão política do continente europeu. Imagine a saída da Hungria ou da Polónia. Seria tão disruptivo como o Brexit e iria contra a vocação europeia pós-1989 de curar as feridas da Guerra Fria e reaproximar o continente. Penso que este tipo de dilema trágico surgirá nas próximas décadas, dando azo a muitas dores de cabeça políticas. Olhar para daqui a trinta anos passa por falar sobre estes dilemas e escolhas de forma sincera no debate público, uma vez que os 440 milhões de europeus que ficam na UE não são nem loucos nem tontos – são eleitores. Sabem que o mundo está a mudar, estão informados sobre as alterações climáticas, a China, as migrações, as reformas do Estado-providência. As pessoas estão preparadas para as escolhas, desde que se insiram nesta paisagem geopolítica mais ampla. Para tal é necessária uma verdadeira politização da Europa, coragem política e energia.

[1] Van Middelaar, Luuk (2017). De nieuwe politiek van Europa. Países Baixos: Historische Uitgeverij. Disponível também em francês e em breve em inglês.

2049: Open Future
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The politics of tomorrow start with the politics of today. Beyond any one theme, this collection of essays, stories, and interviews, complemented by infographics and amazing illustrations, looks forward to imagine the Europe(s) to be in 2049.

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